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sábado, 24 de maio de 2014

A Nova Era




Criada há 150 anos pelo professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, ou Allan Kardec (1804-1869), a doutrina espírita surgiu graças à curiosidade e ao fascínio pela possibilidade de comunicação com os mortos.

Quando chegou ao Brasil, anos depois, o espiritismo encontrou terreno fértil. O sincretismo da mistura entre europeus e africanos acabou impulsionando o movimento. Quem já havia visto um pai-de-santo incorporado em um terreiro não tinha muita dificuldade para crer no depoimento de um médium.

Hoje, quem entra em um centro espírita no Brasil encontra uma mistura de hospital espiritual e centro de estudos. Ali, os tratamentos se resumem ao atendimento com passes (em que o médium repassa ao atendido a energia dos espíritos e a sua), à ingestão de água fluidificada (na qual fluidos medicamentosos são adicionados por espíritos desencarnados), e às desobsessões (nas quais o médium incorpora espíritos que interferem na vida de alguém).

Além disso, há centros onde outras manifestações, como a psicografia, são presenciadas. Quem quiser pode desenvolver sua própria mediunidade. Todos os atendimentos são de graça e tudo é embalado pela divulgação dos livros de Kardec e de autores como Chico Xavier, segundo recomendações da Federação Espírita Brasileira.

Neste começo de século 21, surge um outro tipo de organização que oferece atendimentos nos moldes espíritas. Nelas também é possível receber passes e desobsessões. Mas o que rege o seu trabalho é o chamado movimento New Age. Surgido nos
EUA em meados dos anos 196o, ele se apropria de diversos ensinamentos religiosos e esotéricos para compor um mosaico que pode abrigar de profecias maias à ufologia.






GALILEU visitou várias instituições do tipo em busca da resposta para a pergunta do início deste texto: o que se pratica nesses locais pode ser chamado de espiritismo? Neles há espaço para a cromoterapia — tratamento que usa as cores para curar doenças —, para o tratamento energético com cristais e para o reiki — espécie de “massagem”energética na qual o terapeuta não encosta em seu cliente e transmite vibrações positivas por meio de suas mãos.

“Nossa forma de funcionar é igual à dos centros. Temos tratamentos espirituais e cursos que ensinam o básico. Mas nos abrimos a ensinamentos que não estão na doutrina’ diz o psicanalista e advogado Reinaldo Anieri, presidente da Associação Reencontro,em São Paulo.

“Os espíritas tradicionais dizem que a cromoterapia não deve ser usada, porque Kardec não a mencionou. Mas, naquela época, a luz elétrica ainda dava os primeiros passos. Por que ficar estacionado em 1858?” indaga.

“Não temos nada contra essas terapias, mas, como o próprio Kardec diz, isso tem de ser feito fora da casa espírita”, diz Wladisnei da Costa, membro do conselho da União das Sociedades Espíritas de São Paulo. A instituição reagiu à tendência de forma oficial, em junho deste ano, por meio de um comunicado a seus associados, batizado de “Orientação ao centro espírita”.

O documento, que não tem valor impositivo, começa por dizer que “o trabalho de unificação do movimento espírita (...) é fundamental para o crescimento das instituições espíritas e para a correção de eventuais desvios da adequada prática doutrinária e administrativa”. A seguir enumera práticas cujo uso foi detectado em centros ligados ao movimento, tais como “astrologia, piramidologia, quiromancia, radiestesia, tarô, numerologia, apometria, reiki e cristalterapia”.

O texto também diz que “livros de auto-ajuda e outras literaturas que estão em desacordo com a doutrina não são recomendados para serem oferecidos ou expostos ao alcance do público”. Por fim recomenda “convidar para proferir palestras apenas pessoas reconhecidamente espíritas” e “atentar para o conteúdo dos programas líteromusicais oferecidos às instituições espíritas”. É importante salientar que esse documento não é parte de uma inquisição, apenas uma orientação.

 



Marilda Machini é um exemplo marcante de ex-espírita que se diz levada aos grupos independentes graças à intolerância dos tradicionalistas. Ela se tornou adepta em 1992 e, anos depois, se interessou pelo reiki para tratar da saúde de seu filho. Marilda diz que ouviu críticas a respeito da terapia energética, a qual já havia experimentado, nos cursos que fez na Federação Espírita de São Paulo. E isso a deixou muito incomodada. “Sabia que havia pessoas interessadas pelo tema lá dentro, mas não podíamos conversar a respeito. Achei que era uma atitude dogmática e resolvi sair”, afirma.

Hoje, ela diz que aplica o reiki em seus filhos e amigos. A forma dos atendimentos nas novas instituições também pode fugir aos padrões. Em um centro espírita, uma desobsessão é realizada à distância, depois que o atendido recebe passes. A seguir, a equipe de médiuns do centro reúne-se para incorporar e doutrinar o espírito problemático. Certas vezes, quem procurou ajuda nem sabe quando está sendo assistido.

Já em grupos alternativos como a Fraternidade Espiritualista Calunga, em São Paulo, os métodos são bem diferentes. Liderado desde 1988 pelos terapeutas Marcello Cotrim e Fátima de Carvalho, o grupo põe em prática outra variante da combinação entre elementos do espiritismo e da new age. Muitas das práticas em que se baseiam seu trabalho têm origem em escolas esotéricas, como a teosofia — corrente que nasceu em paralelo ao espiritismo e que se baseia na mistura de ciência e misticismo — e o rosa-crucianismo — doutrina nascida na Europa da Renascença, próxima da alquimia.

GALILEU assistiu a um exercício de desobsessão durante o curso de mediunidade da Fraternidade Calunga em que as pessoas dançavam e cantavam ao som da canção “Amor Perfeito”, do grupo de axé Babado Novo. No telão, imagens de Jesus Cristo eram projetadas. “O trabalho com música popular é uma estratégia para que as pessoas possam evocar aquele mesmo sentimento de bem-estar em outros momentos”, diz Cotrim.

A alegria entre os presentes passa longe da sobriedade que se encontra nos centros espíritas tradicionais. “O espiritismo herdou do catolicismo uma visão moral muito calcada na culpa. Queremos quebrar esse preconceito”, diz Cotrim. Aos olhos de quem assiste à cena pela primeira vez, ela pode lembrar os momentos de louvor em igrejas evangélicas como a Renascer em Cristo e a Bola de Neve.

Expandindo ainda mais o foco da discussão, não apenas a desobsessão, mas a mediunidade em si, é vista de outra forma pelos novos grupos. Para o espiritismo, ela é uma faculdade que todo ser humano possui e que deve ser desenvolvida para a prática da caridade. “Entendemos a mediunidade segundo o conceito de Kardec. Ela contribui para a melhora moral e o aprimoramento do ser humano’: diz César Perri, diretor da Federação Espírita Brasileira.

 



Médium formada pela federação, da qual foi membro durante seis anos, Marilda Machini encontrou uma visão diferente da mediunidade nos grupos independentes. “Aprendi que você é médium não apenas na hora de aplicar o passe”, diz Marilda. Para ela, a mediunidade pode ajudar em todos os aspectos da vida, como os relacionamentos afetivos e familiares. Segundo Marcello Cotrim, da Fraternidade Calunga, “o objetivo é mostrar que o tempo em que a mediunidade servia para comprovar a vida após a morte já passou. Na nova era, o conhecimento deve ser canalizado para acelerar a evolução pessoal”, diz.

A discussão sobre o papel da mediunidade talvez seja a mais importante de todas, já que a própria doutrina nasceu a partir dela. No Brasil, o padrão de trabalho em parte foi estabelecido por Chico Xavier, que nunca cobrou por seus serviços e doou todo o dinheiro arrecadado com seus livros ao longo dos anos.


Hoje, o mais célebre médium de cura do Brasil segue seu ensinamento. Acompanhando o exemplo de Zé Arigó, que ganhou notoriedade a partir da década de 1950, João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus, está transformando a pequena Abadiânia, no interior de Goiás, em centro de peregrinação. O médium atende, gratuitamente, gente de todo o planeta em busca de curas espirituais — sejam elas físicas ou emocionais —, realizando, inclusive, cirurgias visíveis e sem anestesia. Apesar de ter convivido com líderes como Chico Xavier, João faz questão de afirmar que não é espírita.

Já a família Gasparetto, mais popular defensora da ruptura com a moralidade do espiritismo tradicional, adiciona o aspecto financeiro à equação. E não acha que está cometendo nenhum sacrilégio. O clã de médiuns começou a militar no movimento espírita nos anos 1950 e dele se afastou na década de 1990. A matriarca Zíbia é a escritora espírita mais popular do País, com mais de 5 milhões de exemplares vendidos. Seu filho Luiz conquistou projeção internacional com demonstrações públicas de pintura mediúnica, nas quais supostamente incorpora mestres como Renoir e Modigliani, e construiu uma carreira de comunicador que o levou ao rádio e à TV, onde teve um programa até junho deste ano. E há Irineu, médium que apresenta um programa de rádio e faz shows nos quais incorpora grandes músicos brasileiros e internacionais.

Os Gasparetto não são mais considerados espíritas pela vertente tradicional da doutrina. Diferentemente de Chico Xavier, Zíbia fica com os direitos autorais dos livros e Luiz cobra pelos cursos e palestras que ministra em transe mediúnico. “Nossa base ética é espírita, mas temos outra visão. Nosso trabalho tem pinceladas de auto-ajuda”, afirma Irineu Gasparetto.

 




A trajetória de sua família é analisada em “Espiritismo à Brasileira”, livro escrito por Sandra Stoll, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná. “Acho que eles continuam espíritas, pois seguem lidando com a mediunidade segundo o mesmo modelo”, diz a autora. O que mudou foi a ética associada a ela. Após as viagens ao exterior que realizou nos anos 1970 e 1980, Luiz viu que, fora do Brasil, não havia problemas em associar o dinheiro ao sagrado. “Gasparetto critica Cinco Xavier por ter vivido uma vida de penúria e humildade. Pelo contrário, defende uma visão de prosperidade, de que as pessoas estão vivas para serem felizes e viverem bem’: afirma Sandra.

Galileu assistiu a um espetáculo de Irineu Gasparetto realizado em um espaço não-espírita, o Instituto de Pesquisas Projeciológicas e Bioenergéticas, em São Paulo. Cerca de 80 pessoas estavam no local, acompanhando quatro horas de palestras. Gasparetto foi o último. Acompanhado de uma banda, entrou em transe mediúnico e passou 1h20 cantando supostas músicas inéditas de artistas mortos.


 A lista incluiu nomes como Cartola, Raul Seixas, Clara Nunes, Elvis Presley e John Lennon. O público, a princípio meio tímido, demorou a se soltar, mas no final já estava cantando e dançando com o médium. Em sua apresentação, Irineu Gasparetto recitou um poema com rimas pobres e disse: “Um abraço do amigo Vinícius”.

No meio da multidão estava o catarinense André Luiz Monezi Andrade, 24 anos. Psicólogo e mestrando em neurociências pela Unifesp, ele vem de uma família espírita e freqüentou centros regularmente até 2007. No início deste ano, mudou-se para São Paulo, a fim de cursar a pós-graduação. Na capital paulista, começou a freqüentar grupos alternativos e deixou de ir aos centros.


 “Estudar os conceitos hindus de carma [que diz que os indivíduos carregam os erros e acertos de urna vida pregressa para a seguinte] e darma [que trata da missão individual e das ações virtuosas de cada um na Terra] esclarece mais coisas sobre a reencarnação, por exemplo. E o reiki trata daquilo que os espíritas chamam de passe. Acho que esses estudos proporcionam uma forma mais abrangente de se ver o espiritismo”, diz Andrade. “Se, um ano atrás, você perguntasse qual é a minha religião, diria que era espírita. Hoje, não tenho nenhuma”, afirma.

O jovem diz que começou a freqüentar grupos alternativos para conhecer a religiosidade de outros povos. “O espiritismo fala muito em Jesus, mas sempre ouvi que Buda e Krishna também eram iluminados”, diz. Andrade resume a atitude de muitos quando conta que passou a abrir espaço para “novas coisas”.

Quando questionado a respeito da performance de Irineu Gasparetto, o psicólogo foi direto: “Eu acredito que John Lennon se apresentou aqui hoje. Acho que os shows de Irineu são uma forma sadia de lidar com a mediunidade”, afirma. Para o repórter, as reações do público frente ao médium pareceram diversas. Havia rostos nos quais era possível perceber um enorme ponto de interrogação, típico de quem está à frente de uma experiência fora do normal. Mas também era possível ver adeptos em sintonia com o médium. 


As paredes do Instituto de Pesquisas Projeciológicas e Bioenergéticas, onde Gasparetto incorporou gênios da música, são enfeitadas por imagens esotéricas de todo tipo — ETs inclusive. Ali são oferecidos cursos que abordam toda sorte de conhecimento espiritualista, do desenvolvimento da mediunidade à arte de tocar tambores celtas. Wagner Borges, diretor do instituto, foi médium de um centro espírita no subúrbio carioca por sete anos. Também trabalhou com Waldo Vieira, co-autor de 17 livros com Chico Xavier. 


Para Borges, as apresentações de Irineu Gasparetto são uma forma moderna de divulgar o espiritismo. “Se eu convidar um jovem para ir a um culto, é difícil que ele vá. Mas, se eu chamá-lo para ir a um show de música gospel, ele pode gostar e, depois, decidir ir ao culto. O show do Irineu não é religioso, mas faz pensar sobre a vida e a morte”, afirma Borges. De novo, a comparação com os cultos de evangélicos que usam do mesmo expediente é inevitável.




Os tradicionalistas vêem performances como as dos irmãos Gasparetto com reservas. “Ninguém vê espíritos anônimos em apresentações mediúnicas. Todos querem comprar um quadro recém-pintado por Renoir. O valor é muito maior”, diz Wladisnei da Costa, da União das Sociedades Espíritas de São Paulo.

Talvez a crítica mais importante feita pelos grupos independentes seja aquela que se baseia no exemplo de Allan Kardec. Para eles, o movimento institucionalizado restringiu-se apenas àquilo citado pelo criador da doutrina, sem assimilar seu exemplo. Eles dizem que Kardec sempre foi considerado um revolucionário, para quem o movimento deveria acompanhar o avanço da ciência. E as regras do espiritismo tradicional por vezes emperrariam essa evolução. Isso teria feito com que o movimento institucionalizado se tornasse rígido e, por vezes, dogmático. Há líderes independentes que o comparam com a Igreja Católica, lembrando a proibição do uso de métodos contraceptivos pelo Vaticano.

César Perri defende a posição do movimento espírita. “É verdade que ele tem uma característica religiosa, que foi definida pelo próprio Kardec. Ele já falava em seus livros que o espiritismo é uma religião natural, do coração. Mas sempre há indivíduos [ou grupos paralelos] que gostariam de conduzi-lo segundo suas opiniões pessoais e que fazem acusações precipitadas”, diz.

Aqui cabe uma reflexão. No passado o espiritismo foi objeto de perseguições da Igreja e das autoridades brasileiras. Nos anos 1890, nossos legisladores incluíram artigos a respeito de curandeirismo e charlatanismo no Código Penal, motivados pelo atendimento realizado pelos espíritas. A ditadura Vargas chegou a ordenar o fechamento de todos os centros do Rio de Janeiro, então capital federal. De forma intencional ou não, a ênfase no caráter cristão (que, diga-se, já existia desde os tempos de Kardec) permitiu a sobrevivência e o crescimento do espiritismo no País. Como o catolicismo era dominante na classe média, muitos de seus valores foram absorvidos pelos espíritas. Basta lembrar o trabalho de Chíco Xavier, que enfatizava a importância da caridade e da misericórdia, sempre remetendo suas obras a Jesus Cristo.

De forma geral, essa dimensão religiosa parece estar no centro do questionamento dos novos grupos. Com o enfraquecimento da Igreja Católica como referência, não seria natural que o espiritismo se abrisse a novas influências? “É lógico e inevitável”, diz a antropóloga Sandra Stoll. Já segundo a visão institucionalizada de Perri, os espíritas estão dialogando com a diversidade ao participar de eventos ecumênicos. E, de acordo com ele, até as influências católicas do passado estão sendo revistas. “Kardec diz que o nosso compromisso é com o ensino moral de Jesus Cristo. E isso não está tão presente nesses novos grupos”, afirma Perri.

Seja como for, os 6 mil títulos de livros espíritas, que acumularam cerca de 10 milhões de exemplares vendidos em 2007, deixam clara a força da doutrina. E uma rápida busca no Orkut revela que a renovação dos fiéis também é um dado crucial. Até meados de novembro, o site de relacionamentos mais popular entre os brasileiros tinha 790 comunidades com a palavra “espiritismo” no título. Se o termo buscado for “espírita”, o total passa do milhar. O próximo capítulo dessa história parece estar assegurado.


Autor: Pablo Nogueira

Fonte: Galileu, Dezembro de 2008 /iasdemfoco.net

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