O formato da Torá, livro sagrado do judaísmo, impressiona: dois
grandes rolos de pergaminho escritos à mão com tinta especial, presos a
carretéis de madeira e envoltos por um pano bordado e ornamentos de
prata. Seu conteúdo, revelado por Deus a Moisés no monte Sinai, inclui
os 5 primeiros livros da Bíblia e narra desde a Criação até a saga do
povo de Israel pelo deserto em busca da Terra Prometida.
Mas a riqueza
dos pergaminhos vai muito além. Segundo a cabala, tradição mística
judaica, as 304 805 letras hebraicas da Torá também contêm significados
ocultos sobre Deus e as leis do Universo. Ao usarem chaves numéricas e
meditações para desvendar esses mistérios, os cabalistas tiram lições
das histórias narradas no texto. E você não precisa ser rabino ou mesmo
judeu para ter acesso a esses ensinamentos e usá-los para viver melhor.
O segredo da cabala é relacionar palavras e números da Torá de uma
maneira específica.
E sua origem está no Sefer Ietsirá, ou Livro da
Criação, obra minúscula que ninguém sabe ao certo quando e por quem foi
escrita. O fato é que ela introduz a idéia de que Deus criou o Universo
usando as 22 letras do alfabeto hebraico. “O Gênese já dizia que o verbo
divino foi o instrumento da Criação: Deus disse ‘Haja luz’, e houve
luz.
A novidade do Sefer Ietsirá é especular em detalhes como Deus
combinou essas letras”, diz o pesquisador Daniel C. Matt no livro O
Essencial da Cabala. O livro também apresenta a idéia das sefirot,
plural de sefirá, que pode significar “reino”, “esfera” ou “contagem”,
conforme a tradução. Representadas pelos números de 1 a 10, elas são
consideradas outro instrumento da criação do Universo. O livro só não
explicava como usar tudo isso para revelar os significados ocultos da
Torá.
A era de ouro da cabala
Até que no século 13 o espanhol Moisés de León publicou o Sefer Ha
Zohar, Livro do Esplendor, com as regras que consolidaram o que hoje se
conhece como cabala. Ele conectou cada sefirá a um modo que Deus tem de
atuar, bem como a um personagem bíblico. “A sefirá de Chessed, por
exemplo, está ligada ao amor e a Abraão. Quando os cabalistas lêem
Abraão na Torá, lêem também esse aspecto misericordioso de Deus atuando
no mundo”, diz Leonardo Alanati, da Congregação Israelita Mineira.
Além de usar essas associações entre aspectos de Deus e passagens da
narrativa, os cabalistas interpretam a Torá utilizando a guimátria,
numerologia judaica. O princípio é que cada uma das 22 letras do
alfabeto hebraico, do alef ao tav, possui um valor numérico. “As
primeiras 9 letras estão associadas às unidades (1, 2, 3, ..., 9); as 9
letras seguintes estão associadas às dezenas (10, 20, 30, ..., 90); e as
últimas 4 estão associadas às centenas (100, 200, 300, 400)”, diz o
pesquisador David Zumerkorn no livro Os Segredos da Guimátria.
Fazendo
as contas (veja abaixo), surgem os significados ocultos que expandem os
ensinamentos do livro sagrado. “Aparentemente, as histórias da Torá não
têm relação com a vida diária. Mas a cabala mostra que, por trás delas,
há ensinamentos profundos sobre como lidar com nosso semelhante e
encarar as situações”, diz Samuel Lemle, professor do Kabbalah Centre
(Centro de Cabala) no Brasil.
Lemle menciona o mandamento bíblico “Não matarás”, lembrando que na
Torá há uma passagem onde Deus ordena aos israelitas matar o povo de
amalek. Uma baita contradição, certo? A não ser que se usem as contas do
Zohar para ver que as letras hebraicas da palavra amalek têm o mesmo
valor numérico que a palavra safek, que significa “dúvida” ou
“incerteza”.
“A cabala usa a numerologia para entender que matar Amalek
não é matar um povo, mas a dúvida e a incerteza dentro de nós”, diz
Lemle. “A guerra não é contra o inimigo lá fora, mas contra um oponente
interno, um lado negativo da nossa natureza: pensamentos do tipo ‘não
vou conseguir’ e ‘isso não vai dar certo’. Eles sabotam a nossa vida.”
Segundo o professor, cabalistas milenares usavam essa sabedoria para
se tornarem pessoas melhores e crescer espiritualmente. Assim como
cabalistas modernos, eles queriam não apenas compreender mais sobre Deus
mas também obter lições de vida e aconselhar as pessoas. E, ao
contrário do que muitos pensam, o misticismo judaico nunca foi um
oráculo capaz de descobrir coisas sobre o passado ou o futuro.
De vez em
quando alguém até arrisca esse caminho – por exemplo, tentando prever a
chegada do Messias, mas sempre dá errado. O rabino Alanati lembra que a
cabala também não tem nada a ver com amuletos. “Na Idade Média, muita
gente escrevia fórmulas com permutações das letras dos nomes de Deus
atrás da mezuzá (caixinha colocada no batente da porta nas casas
judaicas)”, diz ele.
Uma tradição secreta
Por essas e outras, durante muito tempo não foi fácil ter acesso à
cabala. Os candidatos tinham que ser homens judeus de mais de 40 anos – e
só os mais qualificados espiritualmente eram aceitos. “Os rabinos
temiam que as técnicas caíssem nas mãos de quem não tinha a preparação
necessária.
Em quase todas as religiões, as iluminações místicas dos
leigos sempre foram fontes de risco e heresias”, diz o historiador
Gershom Scholem no livro As Grandes Correntes da Mística Judaica. Até
hoje, judeus ortodoxos restringem o ensino da cabala. Mas algumas
correntes mais progressistas discordam. “Não é que os cabalistas antigos
quisessem ocultar a cabala. É que não tínhamos a linguagem acessível
para compartilhar esses conhecimentos. Mas os avanços da nossa era já
nos permitem entendê-los”, diz Lemle.
A popularização do estudo
Assim o estudo da cabala levou séculos para sair da obscuridade
total, mesmo entre os judeus, até a relativa popularidade atingida nos
anos 90, quando o Kabbalah Centre, nos EUA, abriu as portas da cabala
para leigos de qualquer religião. Madonna, uma de suas freqüentadoras,
garante que tem atraído boas vibrações desde que começou a fazer o
curso.
Os ortodoxos criticam a iniciativa (que inclusive foi rotulada de
cabala “pop” ou “light”), mas o Kabbalah Centre garante que o
conhecimento é o mesmo e até os livros de seus alunos são exatamente os
mesmos que servem de fonte para os judeus.
Segundo Lemle, a primeira coisa que o estudo da cabala proporciona é
uma nova atitude diante da vida. “Do mesmo jeito que existem leis
físicas, como a lei da gravidade, a cabala diz que existem leis
espirituais que regem este mundo.
E nos ensina a conviver com elas em
harmonia”, afirma. Por exemplo: a cabala diz que não existe o acaso, e
sim a lei de causa e efeito. Tudo o que acontece na nossa vida fomos nós
que criamos de alguma forma. Assim, o ensinamento mais importante para
quem começa a estudar no Kabbalah Centre é deixar de ter um
comportamento reativo e passar a ser proativo. Ou seja, deixar de ser o
efeito de determinadas situações e se tornar a causa delas.
“Sendo proativo, você deixa o papel de vítima, que nunca tem controle
sobre a situação. Você aprende a parar, pensar e buscar a melhor forma
de agir em cada momento”, diz Lemle. Segundo ele, isso pode ser aplicado
em situações tão corriqueiras como uma conversa entre irmãos ou uma
briga entre marido e mulher. “Os cabalistas milenares também eram
proativos. Abraão ensinava às pessoas que existia um único Criador e que
havia uma lei de causa e efeito.
Ou seja, ensinava uma forma de encarar
a vida”, afirma.
Na busca por essa nova atitude, os alunos aprendem a usar ferramentas
cabalísticas. As mais simples são feitas de combinações de letras que
não têm nenhum significado em hebraico; são simplesmente chaves, como
ABD, que funcionam como uma espécie de mantra para meditação. “O Zohar
explica que os olhos são as janelas da alma.
Passar os olhos todo dia
por essas seqüências de letras nos ajuda nessa mudança espiritual. O
processo de visualização alimenta nossa alma para que possamos ser
proativos”, diz o professor.
Claro que ninguém vai freqüentar algumas aulas e mudar sua vida de
repente. “Uma pessoa precisa estudar física quântica por muitos anos
para entendê-la profundamente, mas começa aprendendo a contar de 1 a 10.
No curso, é a mesma coisa. O aluno começa contando até 10”, diz ele,
acrescentando que mesmo o conhecimento limitado das primeiras aulas do
curso já possibilita aos alunos tirar algum proveito na prática, como
controlar melhor as emoções no dia-a-dia. “Mas nada vai funcionar se não
tivermos a verdadeira intenção de aprender e nos tornarmos pessoas
melhores.”
A numerologia
A matemática dá novos sentidos à Torá
Há várias formas de interpretar a Torá usando a numerologia judaica. Uma delas é relacionar duas palavras com o mesmo valor numérico ou dois versículos onde essas palavras aparecem. Por exemplo, o valor das letras da palavra amalek (referente ao antigo povo amalek) é o mesmo da palavra safek (“dúvida” ou “incerteza”). Para os cabalistas, isso significa que a ordem bíblica de matar amalek não se refere ao povo em si, mas à dúvida e à incerteza que existem dentro de nós.
Amalek
Ayin70Mem40
Lamed30
Kuf100
240
Safek
Samech60Fei 80
Kuf100
240
Amalek = Safek
A árvore da vida
A estrutura do Universo, segundo a cabala
As 10 sefirot formam uma árvore invertida, chamada Árvore da Vida. A raiz fica em cima, próxima ao aspecto primordial de Deus, e os galhos embaixo, nas sefirot inferiores. A sefirá Malchut é a mais próxima do ser humano e a que lhe dá a primeira sensação de Deus atuando no mundo. À medida que evolui espiritualmente, a pessoa sobe os degraus em direção às sefirot superiores. Além disso, a árvore tem 3 colunas. “Buscamos a coluna central, que é o equilíbrio”, diz Samuel Lemle. “Tenho muito amor pelo meu filho, mas não posso dar tudo a ele, pois o amor também envolve dar limites.” Por isso Chessed (amor) está ao lado de Guevurá (justiça).Fonte:super.abril.com.br/
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